30 de abril de 2010

A caixinha

Parte 1

Vovó Liberdade, um dia, uma tarde, chorou
Primeiro pensei no tenente,
O tenente que era galante, tal qual um ator de TV

[acho que tinha visto um ator de TV ser esfaqueado nalguma novela, por aqueles dias]

Vovó Liberdade chorava, eu ouvia do quarto, pensava que era o tenente
Meu pai chegou de repente, meteu a mão no rádio, desligou:
- A mãe da sua Avó Morreu.
A mão do meu pai que afundou o botão tinha o peso da morte do pai e da avó que eram dele, quando ele tinha uns oito anos.

[idade que eu tinha quando a Mãe da minha Avó morreu]


Agora,
imagina você, ficar sem ouvir rádio em 1958 ?
E eles ficaram, e a casa ficou fechada, e a Vovó Margarida, que é a minha outra Avó e Mãe dele, ficou de preto;
O caixão ficou fechado, porque o Vovô Jair, o Pai do meu Pai, morreu de acidente.
[parece que ouviram pelo rádio]

Mas era 1958, alguns meses depois, o Brasil era campeão do mundo. O meu pai-menino ouviu de dentro do banho, no rádio, o locutor falando.
Vai ver foi por isso que ele viu tanta poesia naquela história de chutar bola.

O futebol era aquilo da rua e era também um épico passado em terras suecas. E por esse tempo, isso tudo era mais ou menos a mesma coisa.

Agora, eu queria era conhecer essa Suécia, a imaginada por um menino de oito anos, órfão, sem televisão.

Vai ver foi por isso que ele descobriu que aquela vida fria da serra era também uma vida bonita, pra fora do luto.
Vida pra fora assim, aquela que se suspeita, como quem ouve no rádio e imagina.
[mas pra fora e não pra dentro, como a televisão insiste em fazer].

A minha lembrança mais antiga de todas,
é meu pai ajoelhado na cama gritando com a televisão.
Seria o Assis ?
Acho que sim. Já fiz até música.
Mas eu tive que ouvir foi no rádio, anos depois, que ser Fluminense nem era tão ruim assim
[o locutor primeiro disse que o gol era do Aílton, depois corrigiu e disse que era gol do Renato]

Mas por que eu era Fluminense ?
Eu era Fluminense por causa do meu pai
Meu padrinho até quis que eu virasse Botafogo

[Eu perguntei a meu pai se podia. Ele disse que podia. Eu perguntei se podia voltar a ser Fluminense. Ele disse que podia].

E meu pai era Fluminense por causa do pai dele.
Mas como o pai dele poderia ser Fluminense se o Tio Salim, irmão dele, era Vasco e o pai deles dois era Libanês ?
Aí o meu pai não soube explicar. Ou não quis. Ou só quis quando o Fluminense ganhou do Boca
[aí a gente viu o jogo no estádio, bem pra fora mesmo, nem rádio nem TV]

E ele falou que um dia foi mexer nas coisas do pai dele. O pai dele já tinha morrido. Nem podia dizer se podia. E ele achou uma caixinha com as cores do Fluminense.

E o que seria a caixinha ?

Um estojo de carregar botão ?

Mas quem gostava de futebol de botão era o outro Avô meu, que eu conheci, e era Flamengo

Era caixinha de música, dessas que tocam o hino ?

Como será que ela era ?

Deve ser memória mais apagada do que aquela minha do Assis, nem adianta perguntar.

Parte dois:

A caixinha,

Farelo tricolor numa casa em luto,
mal sabia o poder que tinha
a caixinha como aquela outra,
a com válvulas, da cozinha

Era a vida que se suspeita,
seguir sem canção perfeita
era canção de memória apagada,
canção-dor que não cura nada

Era o jogo de bola na esquina
era Pelé e Mané e sua rima

[Tinha um anjo de pernas tornas,
pra que tentar explicar o universo ?
qualquer credo de física quântica é tão inútil como um verso]

Da caixinha viemos, pra caixinha voltaremos
Um dia direi a meu filho, joga bola com os outros meninos:
finge que é um rei preto na Suécia. Essas coisas, às vezes, acontecem.

Às vezes não acontecem, demoram.

Um dia o rei está na barriga
Noutro somos plebeus de final perdida

A caixinha

E talvez fosse de levar doce
E talvez nem conteúdo tivesse
Continente de amor sem razão,
Talvez fosse imaginação

A memória de Wally Salomão,
uma caixinha de papelão

19 de abril de 2010

O 18 de abril de Joel Santana

Marx observa em uma de suas obras que os homens constroem sua própria história, mas não a fazem segundo sua livre vontade, e sim sob as circunstâncias legadas e transmitidas pelo passado. E acrescenta, referindo-se a momentos de grande convulsão social: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” Ontem, o Maracanã foi palco de um desses episódios históricos, mas os fantasmas conjurados não foram outros senão os heróis do passado botafoguense. E se foram pesadelo para alguém, certamente não o foram do lado de cá da arquibancada. Pelo contrário.

Loco Abreu por Maurício, Herrera por Paulinho Criciúma, Jefferson por Ricardo Cruz, o 21 de junho de 1989 pelo 18 de abril de 2010. Vinte e um anos depois daqueles vinte e um anos, a história se repetiu, mas não como farsa. Ao final, o concreto surdo que sustenta o palácio do futebol ecoou mais uma vez o grito de desagravo. Pois quando o Botafogo é campeão, nunca o é sozinho. Quando o baile é em preto e branco, a festa é de toda a cidade. Como um novo tempo de esperança que se inicia, é chegado o momento de reparação das injustiças: isso é o Botafogo campeão.

O grande mentor dessa história estava fora das quatro linhas. Ele não empurrou a bola para o fundo da rede, mas escalou a mística alvinegra como titular e, certamente, foi ela quem fez o time campeão. Difícil imaginar outro personagem para o lugar de Joel Santana nesse momento. Onde havia fraquezas, Joel criou virtudes. À limitação técnica, respondeu com espírito de luta. Se o Botafogo tinha apenas uma jogada, Joel fez dela uma sua arma mortal. Se o time carregava o peso de três anos de derrotas seguidas, isso foi transformado em motivação. Joel colocou silenciosamente entre aqueles onze homens exatamente o que o Botafogo precisava. Ele os untou para realizar a história. Os jogadores, entretanto, não fizeram essa história conscientemente. Mas mesmo sem saber, construíram-na em conformidade com a tradição de um passado mítico e glorioso. Talvez por isso tenham sido tão competentes para inaugurar um novo capítulo na história alvinegra. Maracanã, 2010, 2x1, 21 anos depois de 21 anos. Joel fez desses homens Botafogo. Eles souberam ser Botafogo. Um dia, no futuro, serão eles os heróis evocados.

15 de abril de 2010

Sobre o preconceito


Quando entra no sobrado da rua Sete de Setembro encontra Kelly andando de um lado para o outro sob a clarabóia.
"Procurei café e não achei. Você não tem café?"
"Por que você não vai embora e volta de noite, para a lição?"
"Apareceu um rato e eu joguei um livro nele mas não consegui acertar."
"Por que voce fez isso?"
"Pra matar o rato."
"A gente começa matando um rato, depois mata um ladrão, depois um judeu, depois uma criança da vizinhança com a cabeça grande, depois uma criança da nossa família com a cabeça grande."
"Um rato? Qual o mal em matar um rato?"
"E uma criança com a cabeça grande?"


A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. In: Romance Negro e Outras Histórias. Rubem Fonseca.

10 de abril de 2010

A descoberta das cores

Picasso enxergou o Azul
na refeição de um homem cego

O Amarelo nasceu para Van Gogh
da natureza morta de um girassol

Gauguin encontrou o Vermelho
perdendo-se no Taiti

Eu vejo todas as cores,
mas especialmente o Lilás,
no lampejo sereno de vida
toda vez que você Sorri.

VERSO:




Encontro-me parado, de pé, no pátio central de um palácio colonial,
onde há um jardim de plantas de um só tipo

No lugar em que deveriam estar as janelas do casarão,
há:
uma canção do Belchior
uma pintura de Dalí (representação de um crucifixo de detalhes indescritíveis)
vejo também Pedro, meu irmão, a embalar um violão
mexicanos andando num deserto sob o sol, espreitados por carcarás longínquos
um telhado feito de árvores e barro
um cortejo fúnebre sobre nuvens em Bangu
um telefonema de ninguém para ninguém
um Chevrolet que desce a serra para o enterro do tio Camus
um martírio despersonificado
um menino sonâmbulo que sai para comprar pão, meu irmão
uma chuva que não água o solo
a África com litorais de navios saqueados por fantasmas negros
a porta-bandeira de salto quebrado
o absurdo na forma de paredes úmidas.

Descubro que as as plantas estão sãs e verdes.
Vejo que vejo, mas estou à distância de mim
e logo não estou no pátio mas sou o chão do próprio pátio,
em seguida converto-me no pátio,

o pátio da Universidade desmedida
que é a vida.

8 de abril de 2010

Visitas, lampejos e outras cores

Novo blog.
Outros posts, outros poemas.

O vermelho fica,
mas junto do tempo e das saudades:
fica pra trás.

(Sem querer, desastrada que sempre foi, ela fura o silêncio
da noite
do poema:
me diz que "o Amor é grande demais pra caber numa só cor"
e Sorri)