18 de janeiro de 2012

Transcrições noturnas #6

"Não compreendo mais essas populações dos trens de subúrbio, esses homens que pensam que são homens e que entretanto estão reduzidos por uma pressão que eles mesmos não sentem, como formigas, ao uso que deles se faz. Como enchem eles, quando estão livres, seus absurdos pequenos domingos ?
Uma vez, na Rússia, ouvi tocar Mozart numa fábrica. E escrevi isso. Recebi duzentas cartas de injúrias. Nem por isso detesto os que preferem os berros dos cabarés. Eles não conhecem outra música. Detesto, sim, os proprietários dos cabarés. Detesto os que estragam os homens (...)
(...) Há alguns anos, durante uma longa viagem de estrada de ferro, resolvi visitar aquela pátria em marcha em que ficaria por três dias, prisioneiro, durante os três dias, daquele ruído de seixos rolados pelo mar. Levantei-me. Pela uma hora da madrugada corri os carros, de ponta a ponta. Os dormitórios estavam vazios. Os carros de primeira classe estavam vazios.
Mas os carros de terceira estavam cheios de centenas de operários poloneses despedidos na França, que voltavam para a sua Polônia. Caminhei pelo centro do carro levantando as pernas para não tocar nos corpos adormecidos. Parei para olhar. De pé, sob a lâmpada do carro, contemplei naquele vagão sem divisões, que parecia um quarto, que cheirava a caserna e a delegacia, toda uma população confusa, sacudida pelos movimentos do trem. Toda uma população mergulhada em sonhos tristes, que regressava para a sua miséria. Grandes cabeças raspadas rolavam no encosto dos bancos. Homens, mulheres, crianças, todos se viravam da direita para a esquerda, como atacados por todos aqueles ruídos, por todas aquelas sacudidelas que ameaçavam seu sono, seu esquecimento. Não achavam ali a hospitalidade de um bom sono.
E assim eles me pareciam ter perdido um pouco a qualidade humana, sacudidos de um extremo a outro da Europa pelas necessidades econômicas, arrancados à casinha do Norte, ao minúsculo jardim, aos três vasos de gerânio que notei outrora nas janelas dos mineiros poloneses. Nos grandes fardos mal arrumados, mal amarrados, eles haviam juntado apenas seus utensílios de cozinha, suas roupas de cama e cortinas. Mas tudo o que haviam acariciado e amado, tudo a que se haviam afeiçoado em quatro ou cinco anos de vida na França, o gato, o cachorro, os gerânios, tudo tiveram de sacrificar, levando apenas aquelas baterias de cozinha.
Uma criança chupava o seio de sua mãe que de tão cansada parecia dormir. A vida transmitia-se assim no absurdo e na desordem daquela viagem. Olhei o pai. Um crânio pesado e nu como pedra. Um corpo dobrado no desconforto do sono, preso nas suas vestimentas de trabalho, um rosto escavado com buracos de sombra e saliências de ossos. Aquele homem parecia um monte de barro. Era como um desses embrulhos sem forma que se deixam ficar à noite nas bancas dos mercados. E eu pensei: o problema não reside nessa miséria, nem nessa sujeira, nem nessa fealdade. Mas esse homem e essa mulher sem dúvida se conheceram um dia, e o homem sorriu para a mulher; levou-lhe, sem dúvida, algumas flores, depois do trabalho. Tímido e sem jeito, ele temia ser desprezado. Mas a mulher, por faceirice natural, a mulher, certa de sua graça, talvez se divertisse em inquieta-lo. E ele, que hoje é apenas uma máquina de cavar ou de martelar, sentia assim no coração uma deliciosa angústia. O mistério está nisso: eles se terem tornado esses montes de barro. Por que terrível molde terão passado, por que estranha máquina de entortar homens ? Um animal ao envelhecer conserva a sua graça. Por que a bela argila humana se estraga assim ?
E continuo minha viagem entre uma população de sono turvo e inquieto. Flutua no ar um barulho vago feito de roncos roucos, de queixas obscuras, do raspar das botinas dos que se viram de um lado para o outro. E sempre, em surdina, o infatigável acompanhamento de seixos rolados pelo mar.
Sento-me diante de um casal. Entre o homem e a mulher a criança, bem ou mal, havia se alojado, e dormia. Volta-se, porém, no sono, e seu rosto me aparece sob a luz da lâmpada. Ah, que lindo rosto! Havia nascido daquele casal uma espécie de fruto dourado. Daqueles pesados animais havia nascido um prodígio de graça e encanto. Inclinei-me sobre a fronte lisa, a pequena boca ingênua. E disse comigo mesmo: eis a face de um músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa de vida. Não são diferentes dele os belos príncipes das lendas. Protegido, educado, cultivado, que não seria dele ? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, os jardineiros se alvoroçam. A rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. Mas não há jardineiros para os homens. Mozart criança irá para a estranha máquina de entortar homens. Mozart fará suas alegrias mais altas da música podre da sujeira dos cafés-concertos. Mozart está condenado. Voltei para o meu carro. E pensava: essa gente quase não sofre seu destino. E o que me atormenta aqui não é a caridade. Não se trata da gente se comover sobre uma ferida eternamente aberta. Os que a levam não a sentem. É alguma coisa como a espécie humana, e não o indivíduo, que está ferida, que está lesada. Não creio na piedade. O que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro. O que me atormenta não é essa miséria na qual, afinal de contas, a gente se acomoda, como no ócio. Gerações de orientais vivem na sujeira e gostam de viver assim.
O que me atormenta, as sopas populares não remedeiam. O que me atormenra não são essas faces escavadas nem essas feiúras. É Mozart assassinado, um pouco, em cada um desses homens."
Só o Espírito, soprando sobre a argila, pode criar o homem.

Antoine de Saint-Exupéry, Terra dos Homens.

13 de janeiro de 2012

Ensaio sem muito ensaio

Titubeio. O buraco é mais embaixo? Onde fica? É de que tamanho? Não encontro respostas para Isso que encontro no meu país. E não vejo como não pensar a questão dentro do campo mais derrapante e sorrateiro da Filosofia: a discussão sobre a ética e a moral. Fora disso, não vamos nem daqui para lá. Ou nem imagino como posso ficar eu cá, com meus botões.
Vejamos. A hipótese última aparece primeiro: os comandantes dos navios negreiros ordenavam que os escravos fossem jogados ao mar, caso tivessem a embarcação atacada por inimigos. Os escravos eram "a carga". Era melhor "perder" a carga, fazê-la "estragar", a cedê-la aos inimigos em condições de uso. Os negros escravos não tinham alma. Os índios não tinham alma. (Ou a salvação da alma dos índios dependia de que fossem catequizados? Bom, pouco importa.) Quem nunca ouviu falar disso? Hipótese: esta prática, este modo de proceder, de compreender a ordem das coisas, reiterado durante séculos, não desentranha assim, facilmente. Desentranhou? Desentranhará?
O que nos diz um pensador morto na aurora deste século, familiar aos estudantes de direito, sobre o tema da discriminação? Diz-nos: numa primeira instância, "a discriminação se funda em um mero juízo de fato, isto é, na constatação da diversidade entre homem e homem, entre grupo e grupo. Em um juízo de fato deste gênero, não há nada de reprovável: os homens são de fato diferentes entre si (…) O juízo discriminante necessita de um juízo ulterior, desta vez não mais de fato, mas de valor: ou seja, necessita que, dos dois grupos diversos, um seja considerado bom e o outro mau, ou que um seja considerado civilizado e o outro bárbaro, um superior (em dotes intelectuais, em virtudes morais etc.) e o outro, inferior. (…) O processo de discriminação se completa em uma terceira fase, que é verdadeiramente decisiva. Para que a discriminação libere todas as suas consequências negativas, não basta que um grupo, com base em um juízo de valor, afirme ser superior ao outro. Pode-se muito bem pensar em um indivíduo que se considere superior a outro, mas não extraia de modo algum desse juízo a consequência de que é seu dever escravizá-lo, explorá-lo ou até mesmo eliminá-lo. Da relação superior-inferior podem derivar tanto a concepção de que o superior tem o dever de ajudar o inferior a alcançar um nível mais alto de bem-estar e civilização, quanto a concepção de que o superior tem o direito de suprimir o inferior". [Norberto Bobbio. Elogio da serenidade e outros escritos morais. São Paulo: Ed. UNESP, 2002, p. 108-10 (com adaptações)].
Da primeira leitura, pode-se inferir que o autor consinta mesmo em que povos se julguem superiores a outros, caso tenham objetivos nobres. Complicado. Pensemos no Haiti. Será que os haitianos devem estar precisando da ajuda de outros povos? Uma resposta parece emanar: é claro, claro que sim! Mas há desdobramentos não aparentes. No fundo, continua complicado. Certo e errado, bom e ruim, primitivo e desenvolvido…
Bom, o tema desta reflexão não é propriamente a discriminação ou as ideologias discriminatórias. Elas são, por ora, a hipótese última, surgida de outros dois temas: cinismo e hipocrisia. Covardia seria quiçá um terceiro. Tomemos alguns exemplos. Comecemos com a bela reportagem da revista Piauí (janeiro/2012) sobre a criação da "Comissão Nacional da Verdade", da qual um trecho merece destaque, por sintético e acachapante: "Os juízes da Corte [Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos] entenderam da mesma forma: usar uma mesma lei para beneficiar os dois lados teria sido manobra de militares brasileiros para impedir o eventual julgamento, no futuro, dos seus crimes. Um dos juízes foi irônico. Disse que o Brasil encontrara, na Lei de Anistia, 'um jeitinho' para burlar a convenção da OEA que considera imprescritíveis os crimes de grave violação dos direitos humanos: 'O jeitinho brasileiro é muito útil. Só que nós temos uma formação mais cartesiana (sic). A Corte não conhece jeitinhos'". A matéria segue arrebatadora, com exemplos do que foi feito nos demais países da América do Sul - e outros exemplos do nosso jeitinho moral.
Pensemos nos dois chefes do executivo do estado e da capital fluminense. Falastrões. Fanfarrões. Sem o menor senso crítico. O desmando, a inconseqüência dos atos, a inconveniência dos seus comportamentos em público (estrategicamente falando, até mesmo para eles próprios, para suas finalidades eleitorais e de poder), a promiscuidade e a submissão aos interesses da iniciativa privada, tudo isso é menos impressionante do que sua falta de senso crítico. Bem, se pararmos para pensar, de quantas pessoas vive rodeada uma figura pública de alto escalão? Quantos assessores, secretários, assistentes, serventes, criados? Durante quanto anos eles se submetem diária e intensamente a tal atmosfera que bem pode ser comparada a uma corte real? Quantos se levantam para se posicionar - discordar, criticar ou apenas sugerir - ante a autoridade do rei? E, diante da realidade social brasileira, quão deletério, nefasto, danoso, isto pode ser para a melhoria do estado geral das coisas? O próprio Lula é também bom exemplo. Dele, se pode dizer no bom jargão popular: salto alto! Quanta afetação, quanta vaidade! De dar inveja no próprio Deus. É possível que Lula se orgulhasse (e se orgulhe) sinceramente de seu trabalho, mas, em que medida, tanta soberba não é fruto da bajulação solerte dos puxa-sacos de todos os níveis?
A mesma coisa se aplica à vida cotidiana dos simples mortais; e às relações profissionais, principalmente. Será por causa da mentalidade colonial, da ideologia moral da monarquia corrupta que aqui floresceu com esplendor - no bananal, no canavial, no cafezal? E semeiou também um profundo e malévolo sistema baseado em privilégios distorcidos, multiplicado intimamente em todas as relações sociais? Microfísicas de poder, diluídas em gestos aparentemente inocentes, mínimos… Quem se posiciona nas reuniões de trabalho?
"O Brasil não é um país sério", diz a lenda que disse um presidente da França. E a França é? A Alemanha? O Reino Unido? Os Estados Unidos são? Nossos vizinhos na América do Sul? O Japão? A Rússia? A Itália? Gargalhadas… Seria realmente tolo tentar fazer uma comparação deste nível. Seria absurdo, arbitrário, rasteiro. Mas nem tanto assim, por outro lado…
Existe hipocrisia em qualquer lugar, os cínicos estão em toda parte. Mas existem também diferentes níveis de tolerância com o desvio ético, com a farsa em público, com a mentira deslavada. E cidadãos mais ou menos aptos a compactuar, a fingir e a desconfiar das farsas.
Nosso mundo não gera mesmo homens para criar e duvidar. Gera homens para reproduzir e copiar. E obedecer. Trocadilos
É assim: o pensamento dá voltas… Quando se sente a leviandade com que se referem às crianças em "cracolândias", à ocupação criminosa dos latifúndios, à porradaria pelo metro quadrado nas cidades, às torturas passadas e presentes, aos desrespeitos aos direitos humanos, o pensamento dá voltas… Fica acuado, na sombra… A visão do advogado do Diabo: quem é então o corajoso, o rebelde, o que denuncia? Quem assume os riscos? O que acontece aos desobedientes? Fogueiras? Metafóricas - execração pública, perseguição. Se não funcionar, acha-se uma fogueira literal. E a hierarquia? Os fins justificam os meios para se defender a pátria… Nosso jeitinho: nossa Salvação e nossa Danação. Nosso lema de bandeira deveria ser: ME ENGANA QUE EU GOSTO: ACOMODA A MINHA CONSCIÊNCIA.
Desentranhará? Discriminação. Está aí o problema-mór? Na hipótese última? A ideologia discriminatória permite certa insensibilidade às injustiças. Ou é só safadeza mesmo? Pura calhordice?
Quando Saramago era apedrejado pela opinião pública portuguesa por seu "Evangelho Segundo Jesus Cristo", recebeu de uma leitora uma singela carta de apoio:
"Acredito em Deus (sou "protestante"), voto desde sempre no PSD e no dia 16 de março um exame médico confirmou que a minha Mãe ia morrer. O mundo virou-se de pernas para o ar e as certezas absolutas deixaram de fazer sentido. Emprestaram-me o seu Evangelho há um ano. Resolvi lê-lo, provavelmente porque estava zangada com Deus. […] A minha Mãe morreu há um mês. Continuo a acreditar em Deus e é n'Ele que eu encontro sentido para a vida. Não consigo compreender muita coisa. Não consigo compreender as críticas aos seus livros por parte da Igreja. Se as pessoas têm realmente fé e têm a certeza das suas convicções, então por que o medo, o pavor de ler um livro do Saramago?" [Cadernos de Lanzarote, 26 de julho de 1994.]
Deparei-me com este cartaz, no outro dia. Vai aqui, por belo:



Viver é muito perigoso, escreveu o Rosa. Mas por que escondemos nos outros nossos próprios demônios?