23 de agosto de 2011

Melancolia

Quando Pessoa escreveu que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto, acredito que estivesse tratando de um estado que há muitos séculos é conhecido como melancolia. Se, por um lado, uma explicação física para a melancolia nunca foi encontrada, a transformação desse estado em atributo meramente psicológico, por outro, tampouco resolveu a questão. À melancolia, porém, simplesmente não poderia ser atribuída uma causa. E qualquer explicação que se pretenda definitiva para esse estado corre o risco de diagnosticar outros sintomas. Pois a melancolia não é do corpo nem da alma, do gênero nem do indivíduo; ela é simplesmente a condição humana. E por ser humana é sempre uma síntese da condição individual e social, física e psicológica, interna e externa. É a síntese do conhecido com o desconhecido, do que continua com o que acaba, do universal com o singular. É um estado que só existe objetivamente em um, mas enquanto parte do todo. E mesmo objetivamente, não pode não ser subjetivo.

O social que existe como substrato da melancolia não é meramente o imediato. Quanto a isso, não existe diferença substantiva entre a melancolia dos Antigos e a do medievo. Mas é claro que, como qualquer fenômeno humano, a melancolia não existe isolada. A realidade se apresenta de uma só vez em toda sua complexidade, com suas múltiplas determinações, reciprocidades e contradições. Cada estado ou complexo do ser interage com os demais complexos e isso faz com que o resultado final seja algo a priori indefinível. Com isso, naturalmente, também o tratamento dado à melancolia é distinto com respeito a cada uma das sociedades que sobre isso deixaram notas. Visões de mundo distintas, por suposto, vêem de forma diferente a melancolia. E talvez seja possível identificar, sem ironia, que as tentativas atuais de resposta ao problema tendem a evoluir na direção da forma como ele foi tratado, no início, pelos Antigos, mas, contraditoriamente, esvaziando-o do que talvez seja a principal contribuição daquele sistema de pensamento Isso porque, se para a tradição que começa com Aristóteles a causa da melancolia era uma substância produzida pelo corpo (o humor negro ou bile negra), as tentativas contemporâneas de fundar todos os fenômenos psicológicos em bases psiquiátricas – superando o que seriam as “doenças da alma”, esfera onde foi encerrada a melancolia a partir de Freud – acaba por coisificar a melancolia na tentativa de encontrar quais substâncias químicas dentro do organismo respondem exclusivamente pela sua causa – o zinco, talvez? Perde-se, com isso, o assombro metafísico do tratamento Antigo, que, com suas ciências de baixa tecnologia, talvez tenha se aproximado mais do problema do que jamais poderão os modernos microscópios eletrônicos. Não que os microscópios não sejam revolucionários, mas é preciso saber bem para onde apontá-los.

Vivemos em um mundo com cada vez mais sentido prático. Mas esse pragmatismo que parece exacerbado é só aparência. Pois não seria pragmático acabar com a fome na África? O prático, no entanto, quase sempre sinônimo de rentável, transforma-se assim em empobrecedor. E o mundo prático-rentável que configuramos cotidianamente torna o vazio ainda mais fora de ordem, já que tudo precisa estar preenchido. Pois então o interdito à melancolia, incompreendida e transformada em patologia. Quando Mariano e os seus puxavam a angústia de Sabino sobre o Viaduto de Santa Teresa, creio que a vertigem que sentiam era sintoma da melancolia. A vertigem do não haver sentido absoluto para o mundo, da casualidade da vida e da ausência de respostas universais. E não se confunda melancolia com tristeza, apesar de as duas poderem caminhar juntas. Sente-se perfeitamente feliz e melancólico quando se assiste a um pôr-do-sol no cerrado. A melancolia é o olhar diretamente para nós mesmos, é a própria contemplação filosófica sobre o ser: seu devir, seu sentido, seu fim. Como diria Gramsci, todos somos intelectuais. Todos somos melancólicos. E se falta um sentido absoluto para a existência, percebê-lo não implica um convite ao caos, ao aleatório ou à exasperação da ação gratuita. Ter coragem para olhar de frente o tamanho do vazio em que habitamos é o primeiro passo concreto para preenchê-lo. Mesmo se não fomos feitos para sermos felizes, porque simplesmente não fomos feitos para nada – ou seja, com objetivo de nada – temos a chance de preencher essa breve existência com o melhor que há ao nosso alcance: a felicidade. Esse sentido de felicidade, justificado pela natureza prática da existência, é o que deveria servir de guia para nossa construção como indivíduos e como sociedade: desde a casa onde vivemos até a capacidade de superação de nossos obstáculos como gênero humano completo. A melancolia, como fio tênue entre genialidade e loucura, contém os nossos mais profundos sonhos, pesadelos e potencialidades adormecidas. Expressá-la é o que fizeram Cervantes, Beethoven e Van Gogh, por exemplo, que não faziam arte simplesmente, mas simplesmente humanidade em forma de livros, partituras e telas, alimentando-nos diante de um universo sempre indiferente à nossa genialidade ou loucura. O Paraíso é a promessa de extinção da dúvida, mas a transcendência de que precisamos não é divina, é humana. Por isso, nunca cessará a melancolia. Isso, afinal, é bom, pois nos faz homens em vez de imagens vendadas nas capelas do mundo.