31 de outubro de 2010

O direito à preguiça

"Se em nossa linguagem popular diz-se "trabalhar como um negro", na América do Sul, por outro lado, diz-se "vagabundo como um índio". Então, das duas uma: ou o homem das sociedades primitivas, americanas e outras, vive em economia de subsistência e passa quase todo o tempo à procura de alimento, ou não vive em economia de subsistência e pode portanto· se proporcionar lazeres prolongados fumando em sua 'rede. Isso chocou claramente os primeiros observadores europeus dos índios do Brasil. Grande era a sua reprovação ao constatarem que latagões cheios de saúde preferiam se empetecar, como mulheres, de pinturas e plumas em vez de regarem com suor as suas áreas cultivadas. Tratava-se portanto de povos que ignoravam deIiberadamente que é preciso ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Isso era demais, e não durou muito: rapidamente se puseram os índios para trabalhar, e eles começaram a morrer. Dois axiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ocidental, desde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve sob a sombra protetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo categórico: é necessário trabalhar."

Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado.

23 de outubro de 2010

Faça seu jogo

Jogue sua vida na estrada
Como quem não quer fazer nada
Ouça bem as vozes do mato
Como quem abriu o seu coração

Eu sonhei outro mundo, meu amor
E a paz morava na nossa casa
Mil pessoas como nós
Sem palavras, por viver

Sonhei que era tempo de reencontrar amigos
Falar de um velho tempo morto que passou depressa
Sonhei que amanhã é hora de você jogar

Jogue sua vida na estrada
Como quem não quer fazer nada
Jogue sua vida na estrada
Como quem não quer fazer nada
Jogue sua vida na estrada
Como quem abriu o seu coração

de Lô Borges e Márcio Borges,
no disco 'Lô Borges 1972' ou '
Disco do tênis'

22 de outubro de 2010

"Como perdi um amor por conta de um bigode"

O título deste texto poderia remeter a um episódio trágico ocorrido durante a Segunda Guerra ou a uma dolorosa história de amor passada em Coyoacán, Cidade do México. Na verdade, é apenas uma frase rabiscada com a caligrafia borrada (por lágrimas?) em uma folha de papel amarelada que encontrei no antigo armário do meu avô, entre as fotos de família. A frase Como perdi um amor por conta de um bigode está escrita à mão no canto superior da página onde se pode ler um texto datilografado, de apenas um parágrafo, cujo título é: Como perdi um amor ao som de Mercedes Sosa.

A caligrafia da frase rabiscada indica que foi escrita por meu avô quando passava cedo dos 20 anos de idade. Comprovei isso através da comparação de seus cadernos da escola e de cartas escritas ao longo da vida, mantidos em boa condição até hoje pelo zelo carinhoso de meu pai. O texto datilografado, entretanto, não está assinado. Na caixa onde meu avô guardava os poemas que escrevia, não há nada que remeta ao assunto. Ninguém na família conhece o tema, a autoria ou a época em que foi escrito. Pesquisando na internet, encontrei um outro texto que remete este. O título é “Como perdi um amor ao som de Mercedes Sosa”, como no original que encontrei datilografado, com a diferença de que vem entre aspas. Apesar da quase coincidência do título, o texto não é o mesmo que encontrei entre as fotos antigas. O que foi achado na internet é fundamentalmente uma especulação sobre o que teria sido o texto original, além de uma confissão disfarçada de narrativa. Seu autor, desconhecendo a existência da cópia encontrada no armário de meu avô, reivindica a autoria hipotética deste texto, mesmo admitindo que ele nunca foi escrito.

Sabe-se que meu avô comprou uma Olivetti com o seu primeiro soldo como escriturário. A nota fiscal da máquina também foi preservada por meu pai, juntamente com outra que registra, para a mesma data, a aquisição de um LP de Mercedes Sosa. Apesar de uma clara alusão ao título do texto datilografado (escrito de fato e comentado em sua existência hipotética), o título escrito à mão, Como perdi um amor por conta de um bigode, remete a um texto que possivelmente nunca foi escrito.

16 de outubro de 2010

ECO

ECO

Letra e música: Pedro David

O grande, não banca essa de dândi

A gente sabe onde se esconde a insegurança em você

Milorde, seu terno não me comove

(Nem seu apartamento ou seu carro importado)

Caiu um pouco do cabelo, eu sei

Bateu aquele desespero, eu sei

É muita conta e angústia pra puxar

A vida passa num segundo, eu sei

A gente muda com o mundo, eu sei

(E às vezes não consegue nem notar)

Mas grande, você não é aquele lá da faculdade,

Que quase todo dia, fim de tarde, fumava unzinho com a gente ?

Sacava quase tudo de Filosofia, escrevia uma canção por dia, ia fazer diferente...

PS:

Versão censurada:

Mas grande, você não é aquele lá da faculdade,
Que quase todo dia, fim de tarde, tomava um vinho com a gente ?
Sacava quase tudo de Filosofia, escrevia uma canção por dia, ia fazer diferente..

O silêncio que pesa

Houve três tipos de votos em Marina no primeiro turno. O primeiro foi o voto do eleitor descrente no jogo político e relativamente alheio ao debate eleitoral. O segundo foi o do eleitor legitimamente preocupado com as causas ambientais. O terceiro foi do conservador não extremado que não encontrou nenhum bom motivo para votar em Serra (que seria seu candidato natural) e precisava de uma desculpa (um candidato-álibi) para disfarçar o preconceito de votar em Dilma e no PT.

O primeiro voto não é tão surpreendente. Heloísa Helena, em 2006, obteve, à luz do escândalo do mensalão, 6% dos votos muito em conta de um discurso moralista de fim da corrupção. O aparecimento de um terceiro candidato com fôlego para somar 10, 15 ou até 20% dos votos pode ser considerado um resultado natural considerando um ambiente eleitoral desgastado por escândalos e um pleito em que as duas propostas com mais apelo diferem, para esse eleitor, mais visivelmente apenas pela habilidade de construir candidatos-mercadorias. A comparação FHC x Lula, que deixaria claro ao eleitor que não faz sentido votar em Serra, foi parcialmente encoberta pelo denuncismo da imprensa conservadora, com impacto principalmente sobre a classe média. Uma terceira opção, por essa ótica, funciona como válvula de escape contra a vulgarização crescente do debate político. O eleitor que considera superado o debate político nos termos tradicionais, que não acredita nem na direita nem na esquerda, aposta em uma pseudo-renovação com um partido, uma causa e uma candidata que se dizem “acima da política”.

O segundo voto é compreensível à luz da crescente ênfase dada por diversos setores da sociedade às questões de preservação ambiental, que alcança diversos setores da sociedade. Se a ética verde é dotada de uma efetividade passível de resolver os problemas de degradação da natureza no mundo capitalista ou se é suficiente como discurso político para aplacar a miséria social em que vive boa parte do planeta, isso é outra conversa. A legítima preocupação com a natureza angariou para a Marina uma parcela de eleitores que adota esse ponto de vista, mesmo não o relacionando de maneira aprofundada com o restante das questões políticas, econômicas e sociais.

O terceiro voto é o mais curioso. O eleitor da direita não extrema, confrontado com os êxitos da administração petista frente aos resultados da era FHC, não encontrou meios para refutar a superioridade de Dilma sobre Serra (ou de Lula sobre FHC). Como votar no candidato descendente de um governo que terminou com aprovação popular na casa dos 30% contra a candidata sucessora de um presidente com mais de 70% de aprovação? Comparando os resultados econômicos dos períodos Lula e FHC, não há escolha lógica para o eleitor que se apega a esses dados que não o voto em Dilma. Mas como votar na Dilma, no PT, na esquerda? Isso seria uma violência para a mente confusa do pobre eleitor conservador. Marina surge então como salvação. Impossível de ser posta na comparação FHC x Lula, ela se torna a alternativa possível. Afinal, Serra, que seria o candidato natural desse eleitor, nem de longe é um candidato que entusiasma: antipático e sem nenhum diferencial político significativo capaz de suplantar o sucesso de Lula e a promessa de continuidade com Dilma.

É claro que os três motivos principais se entrecruzam e se potencializam mutuamente. Mas o mais impressionante é como isso foi instrumentalizado pela direita do microfone, a grande mídia. Depois de um mês de ataque constante à candidatura da Dilma por conta de escândalos de corrupção, o jornal O Globo passou a última semana antes do primeiro turno promovendo o debate entre Marina e a candidata do PT. Fiquei confuso: por que pararam de bater em Dilma e promover o Serra, justamente na última e decisiva semana? Com todos os malabarismos acusativos feitos pelos principais meios de comunicação do país, Dilma caíra no máximo 2 pontos em todas as pesquisas de intenção de voto. Era evidente que a estratégia diretamente pró-Serra estava esgotada. A solução? Depois de tirar todos os votos possíveis de Dilma para Serra, a imprensa resolveu instigar a transferência de votos de Dilma para Marina, que não tinha a menor chance de passar para o segundo turno. Surgiu com força a questão do aborto, a expressão “onda verde” e alcunha de “maior vitoriosa do primeiro turno”, dada à candidata verde após a votação. A candidatura de Marina foi inflada quando não havia tempo hábil para ultrapassar Serra. Marina, que já não tinha nenhuma chance de ficar em segundo lugar, foi usada pela direita para que houvesse segundo turno. Foi usada com o mesmo espírito com que a candidatura de Lula foi instrumentalizada nas eleições de 1989. Se o candidato mais perigoso para a direita na época era Leonel Brizola (considerando o peso de sua figura na história política brasileira pré-durante-pós-ditadura), abrir espaço para a candidatura petista era necessário de acordo com o raciocínio “ele é o mais fácil de derrotar”. Brizola, que sempre foi uma pedra no sapato da Globo, foi o mais difamado antes do pleito. Deixou de ir para o segundo turno por uma diferença mínima e não obteve o pedido de recontagem dos votos (que eram feitos manualmente). Lula, por sua vez, com sua tradicional característica de não fazer política com o fígado, foi beijar a mão dos Marinho logo depois do impeachment do Collor.

Dois pontos ressaltam desse quadro. Primeiro, as eleições passam, mas a imprensa continua usando os mesmos artifícios para impor os interesses particulares de uma minoria sempre privilegiada sobre a sociedade como um todo. Segundo, se Marina não declarar apoio a Dilma, enterrará sua credibilidade junto à esquerda e estará prestando um grande desserviço político ao país. Fico pensando se ela, tradicionalmente ligada a movimentos sociais e aos anseios das camadas mais pobres, está sentindo algum peso na consciência por ainda se manter calada diante de toda a campanha conservadora da imprensa pró-Serra.

Impedir o retorno do PSDB/DEM, evitando o reposicionamento da velha direita, e garantir a vitória de Dilma contra todos os esforços da imprensa manipuladora e preconceituosa, porta-voz dos segmentos conservadores, serão as maiores conquistas dessa eleição.

7 de outubro de 2010

Entrevista

Vida que morre e que subsiste
Vária, absurda, sórdida, ávida,
Má!

             Se me indagar um qualquer
Repórter:
             "Que há de mais bonito
No ingrato mundo?"
                                     Não hesito;
Responderei:
                             "De mais bonito
Não sei dizer. Mas de mais triste,
— De mais triste é uma mulher
Grávida. Qualquer mulher grávida."

Manuel Bandeira, em Estrela da Tarde (1963)