
12 de fevereiro de 2011
O caminho da Concórdia
"A guerra é mãe de todas as cousas", afirmava o General Golbery, ideólogo da ditadura militar no Brasil. Claro que o homem tinha razão, ainda mais analisada a trajetória da espécie humana em vasta perspectiva. Invasões, batalhas, dominação, escravaturas - é disso que se trata. A paz é, então, uma quimera. Uma licença poética da História e de seus redatores. Sobrevirá um dia? Na chegada de um messias? Religiões, ficções. Licença! Poética! Ficciono em paz e verso: Vejo o dia em que o homem mais branco que existe na Terra, à primeira vista o mais perfeito espécime caucasiano, Mas na verdade preto, Filho do mais velho homem que já houve, Mais preto porque mais pronto, A pele pronta para o sol e para a noite, Evolução primordial Voltará à África, à Mãe E pelos seus pais, irmãos e filhos Será visto, alvo, supremamente Branco E será reconhecido como um preto Como todos os pretos que existem Ou como por qualquer outra cor de pele Cores que deixarão de ser vistas Será abraçado, virará Deus, o Messias E reinará Imperador de um Reino De milhões de imperadores Todos pretos, todos brancos Todos Deuses, todos Messias Todos humanos Fim dos disparos, das explosões Glória do amor e da Paz Sobrevirá a passagem dos estágios Bélico, belicoso, belicista, beligerante: Belisário!

11 de fevereiro de 2011
Deus está nos detalhes
A frase acima é dita logo no começo do filme argentino Luna de Avellaneda (2004) - em português, traduzido por Clube da Lua. É dita pelo hilário personagem Amadeo Grinberg do mesmo modo inadvertido e displicente com que este pinta bonequinhos da combalida mesa de totó com as cores do clube; do mesmo modo desleixado, aliás, com que faz tudo na vida. "Deus está nos detalhes": esta pode ser a premissa da pérola que o diretor José Luis Campanella constroi.

Assisti ao filme pela terceira vez. Na primeira, quando estava em cartaz no cinema do Museu da República, fiquei impressionado com a elegância e leveza da obra, com seus carismáticos personagens, seus ótimos diálogos e sacadas divertidas. Julguei-no então um filme simpático, de qualidade irrepreensível, bom representante do excelente cinema dos nossos vizinhos, mas não uma obra-prima.
Revi em DVD, quando alguém lá em casa o alugou. Ao repetir a dose, pude prestar mais atenção na construção do roteiro, nos conflitos entre os personagens, aos diálogos recheados de boas histórias, conversas e situações que se desdobram reiteradas vezes e realçam a sutileza dos dramas encenados, além de denotarem o cuidado minucioso dos autores do roteiro e dos montadores, que conhecem o enredo do início ao fim. Há trabalho ali: inspiração e transpiração. Gostei ainda mais do filme, exatamente por isso. Passei a considerá-lo um ótimo exemplo de filme de narrativa clássica, cinemão que amalgama diversão, emoção e reflexão. (Talvez haja ainda quem considere essa alquimia impossível.)
Nas minhas aulas imaginárias de Introdução à Linguagem Audiovisual, Luna de Avellaneda faria parte da ementa do curso, juntamente com Nanook, O Esquimó, O Poderoso Chefão, A Marcha dos Pinguins, O Pagador de Promessas, Rocky - Um Lutador, Acossado etc. (Abriria o curso com Frankenstein: um prelúdio prevenindo alunos contra a metodologia proposta...)
Filme bem-acabado, caprichado. Quanto ao tema, continuava considerando-o um pouco menor, enxergava na intenção da película um saudosismo de classe média - de viés um tanto conservador - acerca de uma era de ouro que a Argentina teria vivido. Julgava que esta época de glória nunca teria existido para toda a sociedade daquele país, somente na imaginação de sua classe média. Suspeitava e queria crer que a Argentina teria problemas sociais parecidos com os dos demais países da América Latina e, naturalmente, com os do Brasil. Dentro desta lógica, então, o drama do personagem Román Maldonado (Ricardo Darín) parecia-me um pouco tolo. Já me acusaram, mais de uma vez: "você gosta de não gostar". Se isto é verdade, é verdade também que gosto de gostar não gostando.
Fui ver este Campanella novamente, já depois de ter já assistido El Secreto de Sus Ojos (2009), ópera magistral que premiaram com o Oscar de Filme Estrangeiro, no ano passado. Queria rever a história mais leve de cinco anos antes, mas não menos contundente que este último filme. Surpreendi-me e encantei-me outra vez.
O estilo do diretor é curioso. Ele parece apreciar os cânones clássicos. O primeiro plano do filme é uma grua que mostra um homem trepado num pau-de-sebo, que se movimenta para mostrar a quermesse e o letreiro do filme. Campanella gosta de travellings, de twitlights, de plano e contra-plano em câmera fixa, de fades, de trilhas sonoras de piano! Quando assisto aos seus filmes, penso que minha mãe também ia gostar, meu pai e minha avó, se visse. O cara caminha em areia movediça, mas não afunda.
Todos estes recursos que poderiam estar a serviço dos clichês em trabalhos elegíacos à pieguice novelesca, são bem dosados pelo diretor e ajudam a compor as pinceladas de sua bela tela. De lugares-comuns, ele mostra que entende quando ironiza dogmas da psicologia barata de livros de auto-ajuda nas palavras de um "convertido" ex-alcoólatra Amadeo, durante o enterro, mais para o final do filme.
Desta vez, chamou-me muito a atenção a dureza dos diálogos. Os dramas dos personagens, embora amenizados pelas astutas tiradas cômicas, são extremos. É uma intensa lavação de roupa suja. Mas há também declarações rasgadas de amor, há ambiguidade, dúvida e fracasso nos personagens. Expõe-se a aspereza cotidiana; expõem-se o amargo das reavaliações e a dor dos momentos de transição.
Talvez se trate sim de uma parábola sobre a decadência econômica da Argentina, mas esta leitura é tão estreita quanto a de avaliar o filme como um suspiro nostálgico de classe média falida. O país vive há mais de uma década num contexto de desmantelamento severo de suas instituições sociais e de corrosão do poder aquisitivo da classe média. Mas este estrato social lá é verdadeiramente mais abrangente de que no Brasil. O cidadão médio argentino (uma massa enorme de sua população) experimentou uma realidade de avanços sociais e de padrão de consumo sem par na América Latina. Os pobres - "cabecitas negras", como são apelidados pejorativamente - são os moradores de villas, descendem de índios, não se parecem europeus nem ostentam sobrenomes italianos, alemães e espanhóis.
Tudo isso forma inteligentemente o pano de fundo da história. É nele que vemos surgir os desgastes da vida conjugal, a supressão da novidade, do encanto e do lazer pelas obrigações, as fragilidades e as solidões tão comuns nos nossos formigueiros da vida urbana. O filme conduz a reflexão sobre nossa questão pós-moderna: a morte do coletivo pelo individualismo. O prático, o viável, o sustentável se sobrepondo ao estável, ao afável, ao generoso. A disputa pelo "terreno": um minimercado contra um campo de futebol, como na anedota do velhote que adora a Lua.
A Lua, a falsa lua feita de luminária e biombo no leito de morte, a pulseira feita de restos de aparelho fixo, desfeita depois em anéis, um passeio de barco num rio sujo que separa o bairro da favela, os palitos de fósforo, a mão da professora de balé através da tampa de refrigerante, o olhar encantado da pequena bailarina. Tudo precário, tudo digno, tudo humano.
Deus está nos detalhes.

Assisti ao filme pela terceira vez. Na primeira, quando estava em cartaz no cinema do Museu da República, fiquei impressionado com a elegância e leveza da obra, com seus carismáticos personagens, seus ótimos diálogos e sacadas divertidas. Julguei-no então um filme simpático, de qualidade irrepreensível, bom representante do excelente cinema dos nossos vizinhos, mas não uma obra-prima.
Revi em DVD, quando alguém lá em casa o alugou. Ao repetir a dose, pude prestar mais atenção na construção do roteiro, nos conflitos entre os personagens, aos diálogos recheados de boas histórias, conversas e situações que se desdobram reiteradas vezes e realçam a sutileza dos dramas encenados, além de denotarem o cuidado minucioso dos autores do roteiro e dos montadores, que conhecem o enredo do início ao fim. Há trabalho ali: inspiração e transpiração. Gostei ainda mais do filme, exatamente por isso. Passei a considerá-lo um ótimo exemplo de filme de narrativa clássica, cinemão que amalgama diversão, emoção e reflexão. (Talvez haja ainda quem considere essa alquimia impossível.)
Nas minhas aulas imaginárias de Introdução à Linguagem Audiovisual, Luna de Avellaneda faria parte da ementa do curso, juntamente com Nanook, O Esquimó, O Poderoso Chefão, A Marcha dos Pinguins, O Pagador de Promessas, Rocky - Um Lutador, Acossado etc. (Abriria o curso com Frankenstein: um prelúdio prevenindo alunos contra a metodologia proposta...)
Filme bem-acabado, caprichado. Quanto ao tema, continuava considerando-o um pouco menor, enxergava na intenção da película um saudosismo de classe média - de viés um tanto conservador - acerca de uma era de ouro que a Argentina teria vivido. Julgava que esta época de glória nunca teria existido para toda a sociedade daquele país, somente na imaginação de sua classe média. Suspeitava e queria crer que a Argentina teria problemas sociais parecidos com os dos demais países da América Latina e, naturalmente, com os do Brasil. Dentro desta lógica, então, o drama do personagem Román Maldonado (Ricardo Darín) parecia-me um pouco tolo. Já me acusaram, mais de uma vez: "você gosta de não gostar". Se isto é verdade, é verdade também que gosto de gostar não gostando.
Fui ver este Campanella novamente, já depois de ter já assistido El Secreto de Sus Ojos (2009), ópera magistral que premiaram com o Oscar de Filme Estrangeiro, no ano passado. Queria rever a história mais leve de cinco anos antes, mas não menos contundente que este último filme. Surpreendi-me e encantei-me outra vez.
O estilo do diretor é curioso. Ele parece apreciar os cânones clássicos. O primeiro plano do filme é uma grua que mostra um homem trepado num pau-de-sebo, que se movimenta para mostrar a quermesse e o letreiro do filme. Campanella gosta de travellings, de twitlights, de plano e contra-plano em câmera fixa, de fades, de trilhas sonoras de piano! Quando assisto aos seus filmes, penso que minha mãe também ia gostar, meu pai e minha avó, se visse. O cara caminha em areia movediça, mas não afunda.
Todos estes recursos que poderiam estar a serviço dos clichês em trabalhos elegíacos à pieguice novelesca, são bem dosados pelo diretor e ajudam a compor as pinceladas de sua bela tela. De lugares-comuns, ele mostra que entende quando ironiza dogmas da psicologia barata de livros de auto-ajuda nas palavras de um "convertido" ex-alcoólatra Amadeo, durante o enterro, mais para o final do filme.
Desta vez, chamou-me muito a atenção a dureza dos diálogos. Os dramas dos personagens, embora amenizados pelas astutas tiradas cômicas, são extremos. É uma intensa lavação de roupa suja. Mas há também declarações rasgadas de amor, há ambiguidade, dúvida e fracasso nos personagens. Expõe-se a aspereza cotidiana; expõem-se o amargo das reavaliações e a dor dos momentos de transição.
Talvez se trate sim de uma parábola sobre a decadência econômica da Argentina, mas esta leitura é tão estreita quanto a de avaliar o filme como um suspiro nostálgico de classe média falida. O país vive há mais de uma década num contexto de desmantelamento severo de suas instituições sociais e de corrosão do poder aquisitivo da classe média. Mas este estrato social lá é verdadeiramente mais abrangente de que no Brasil. O cidadão médio argentino (uma massa enorme de sua população) experimentou uma realidade de avanços sociais e de padrão de consumo sem par na América Latina. Os pobres - "cabecitas negras", como são apelidados pejorativamente - são os moradores de villas, descendem de índios, não se parecem europeus nem ostentam sobrenomes italianos, alemães e espanhóis.
Tudo isso forma inteligentemente o pano de fundo da história. É nele que vemos surgir os desgastes da vida conjugal, a supressão da novidade, do encanto e do lazer pelas obrigações, as fragilidades e as solidões tão comuns nos nossos formigueiros da vida urbana. O filme conduz a reflexão sobre nossa questão pós-moderna: a morte do coletivo pelo individualismo. O prático, o viável, o sustentável se sobrepondo ao estável, ao afável, ao generoso. A disputa pelo "terreno": um minimercado contra um campo de futebol, como na anedota do velhote que adora a Lua.
A Lua, a falsa lua feita de luminária e biombo no leito de morte, a pulseira feita de restos de aparelho fixo, desfeita depois em anéis, um passeio de barco num rio sujo que separa o bairro da favela, os palitos de fósforo, a mão da professora de balé através da tampa de refrigerante, o olhar encantado da pequena bailarina. Tudo precário, tudo digno, tudo humano.
Deus está nos detalhes.

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